Pandemia encontra economia vulnerável no Estado e capital por crise fiscal, política e de segurança – Do Valor Econômico, por Bruno Villas Bôas e Alessandra Saraiva
A recessão provocada pelas medidas de isolamento social que atingiu o Brasil encontrou o Estado do Rio de Janeiro e sua capital especialmente vulneráveis, depois de anos de perda de dinamismo econômico e uma combinação de crises nas áreas política, fiscal e de segurança pública. O Estado tem o pior resultado de emprego formal no país na pandemia e a quarta maior queda da atividade econômica no segundo trimestre.
Mas o Rio não é um caso perdido. Especialistas sugerem saídas, que exigem grande dose do que faltou aos governantes nas últimas décadas: planejamento de longo prazo, disciplina de execução, continuidade de políticas públicas, responsabilidade fiscal, suporte político-partidário, coalizão de forças na sociedade. São meios para diversificar a economia regional, atrair mais talentos e empresas inovadoras e melhorar a imagem dentro e fora do país.
Cidade tem condições de atrair fintechs e empresas do complexo de saúde, sugerem especialistas
“Cidades podem morrer. Não é que elas desapareçam, mas perdem dinamismo, a capacidade de atrair jovens talentosos e empresas inovadoras. A economia do Rio está aos poucos morrendo e o motivo é o mau governo. Falta de integridade com a coisa pública. A gestão é ruim e há abandono. Mas existem, sim, saídas para a cidade e para o Estado”, diz Claudio Frischtak, sócio da Inter.B Consultoria.
A partir de hoje e pelas próximas duas semanas o Valor publica uma série de reportagens e de entrevistas discutindo as razões da crise do Rio e possíveis soluções apontadas por especialistas de diferentes áreas. O objetivo é fazer diagnósticos e debater propostas para enfrentar a crise nos campos econômico, político e social. A discussão é importante uma vez que, na visão de vários analistas, o Rio é o Brasil amanhã: a capital fluminense antecipa tendências nacionais, para o bem e para o mal. Amanhã será publicada a segunda reportagem sobre a economia do Rio.
Dados do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) mostram que a economia do Estado do Rio recuou 8% no segundo trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2019. O resultado fica atrás apenas dos de Amazonas (13,5%), Paraná (9,3%) e Ceará (9,2%). Desde março, no início da pandemia, o Estado do Rio perdeu 184,9 mil empregos formais líquidos, baixa de 5,7% no estoque, pior desempenho do país.
A perspectiva de recuperação a curto prazo não inspira. Projeção da 4E Consultoria aponta para queda de 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado Rio em 2020, perda mais intensa do que a esperada para a média nacional (-5,6%). “O Rio vai sofrer mais porque 80% de sua economia é de serviços, atividade que se recupera mais lentamente da crise, além dos ruídos políticos e fiscais”, diz Luca Klein, analista da consultoria.
Esses resultados mais fracos do que os demais refletem um longo período de esvaziamento. Mauro Osório, professor da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e especialista na economia fluminense, acredita que a perda de dinamismo começa nos anos 1970, dez anos depois da inauguração de Brasília. Foi quando o processo de transferência de poder para a nova capital federal começou a afetar a economia da cidade.
“Ministérios foram retirados do Rio e, com eles, uma variedade de empresas e associações de atividades reguladas que gravitam em torno do poder. A Susep [Superintendência de Seguros Privados] ficou no Rio de Janeiro, por exemplo, e até hoje as empresas de seguro permanecem na cidade”, exemplifica o economista. “Essa perda ocorreu sem compensações financeiras para o Rio de Janeiro, problema que persiste até hoje.”
Outro aspecto da decadência do Rio é uma “lógica de máfias” no poder fluminense. Osório refere-se não apenas à sucessão de cinco governadores presos no Estado do Rio nos últimos anos, além do atual governador afastado, mas também a uma lógica política iniciada com as cassações no Rio a partir do golpe de 1964, que permitiram o surgimento do chaguismo – um modo de fazer política do governador Chagas Freitas, que misturava coisa pública e privada. O golpe de 1964 cassou políticos à esquerda e à direita, incluindo Carlos Lacerda, tido como um “bom administrador” da Guanabara, uma cidade-Estado enquanto durou (a análise política será aprofundada na segunda parte da série, a partir do dia 21).
“O problema da corrupção não é apenas o valor desviado, mas também para onde a estratégia econômica passa a apontar para atender àquele lobby específico. O primeiro passo da recuperação da cidade e do Estado do Rio é, portanto, romper com lógica de máfia na política, essa mentalidade que é uma das origens da decadência”, acrescenta o economista.
Nesse contexto, a participação do Estado Rio no PIB nacional encolheu de 16,7% em 1970 para 10,2% em 2017. Segundo Gustavo Morelli, da consultoria Macroplan, a desconcentração do PIB nacional entre as regiões foi tendência nas últimas décadas, mas a intensidade desse movimento no Rio seria mais forte do que o “normal”. “Faz parte do processo de percepção de piora da qualidade de vida, problemas de segurança e serviço público prestado”, diz Morelli.
Em um período mais recente, de 1996 a 2017, o PIB fluminense cresceu a um ritmo médio de 1,4% ao ano, o pior resultado das 27 unidades da federação. O baixo crescimento médio do período ocorreu mesmo com fases de maior euforia, como em meados da década de 2000, com a explosão dos preços de commodities e as descobertas do pré-sal, e os grandes eventos esportivos realizados na cidade e no país ao longo desta década.
Ricardo Barboza, professor colaborador da Coppead/UFRJ, acredita que a percepção dos agentes sobre a gestão pública é relevante para o ambiente de negócios na cidade, que representa praticamente a metade do PIB do Estado do Rio (48,7%). Ele vê oportunidades em áreas tão diferentes como turismo, cultura, energia, audiovisual, finanças e inovação.
“O Rio precisa desse ambiente para atrair atividades que paguem melhores salários. Nesse aspecto, a cidade tem uma vantagem: o nível educacional da população acima da média. Oferece ainda infraestrutura em áreas como cultura e produção científica”, diz o economista, que contribui para a campanha do pré-candidato Eduardo Bandeira de Mello (Rede) à prefeitura.
A vocação mais lembrada é a do turismo – há as praias e um patrimônio histórico e cultural sem paralelos. Apesar de ter sediado a Olimpíada de 2016 e a final da Copa do Mundo de 2014, esse potencial permanece insuficientemente explorado, até porque o Rio ainda não consegue resolver passivos ambientais como a poluição das baías de Guanabara e Sepetiba e a contaminação das lagoas da Barra da Tijuca, na zona oeste (tema da terceira parte da série, a partir do dia 28).
Além disso, a cidade carece de uma agenda de eventos capaz de preencher todo o calendário e movimentar hotéis, restaurantes e outros serviços. “Não bastam alguns grandes eventos como carnaval, Rock in Rio. A cidade precisa também de turismo de negócios. Diversificar a atividade produtiva da cidade, tornar-se referência em alguns setores, pode contribuir para isso”, diz Marcel Balassiano, economista do Ibre/FGV.
A segurança pública é um problema e se configura como um obstáculo para o turismo. Camila Saito, economista da Tendências Consultoria, diz que, apesar de ter mostrado alguma melhora nos últimos anos, a situação da segurança pública ainda é grave. Segundo ela, o Estado do Rio responde atualmente por 10% do total de homicídios do país e por mais de 40% do total de roubo de cargas nacional.
O problema da segurança passa ainda pelo fenômeno do crescimento das milícias, que operam dentro das estruturas do Estado por meio da ligação com agentes públicos na polícia e nas instâncias de decisão política, como a Assembleia Legislativa e a Câmara de Vereadores. “A grave situação da segurança afeta o desempenho econômico, principalmente na cadeia de serviços, com destaque para o turismo”, avalia a economista.
A indústria de petróleo e gás é outra vocação natural, embora economistas reconheçam a necessidade de romper com a dependência dos municípios e do Estado em relação aos royalties e participações especiais de petróleo (ver reportagem Aposta na receita do petróleo acelerou problemas). “O Rio é viciado em petróleo”, diz um ex-secretário de Estado.
Nos últimos anos, porém, o petróleo sustentou o ritmo da indústria do Estado – setor que inclui ainda montadoras, siderúrgicas e construtoras. E, mesmo assim, estaria subaproveitado. Segundo Osório, 80% dos fornecedores do setor não estão instalados no Estado do Rio. Uma parte relevante dos estaleiros está fechada, após mudanças na política de conteúdo nacional e os impactos da Operação Lava-Jato.
Clarissa Lins, presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), diz que o setor deverá investir de R$ 55 bilhões a R$ 70 bilhões por ano em “upstream” (exploração e produção) nos próximos anos. Desse valor, 90% serão desembolsados por petroleiras instaladas no Rio. “O Estado tem empresas competitivas que podem pegar parte da demanda, como fabricantes de linhas flexíveis, árvores de natal. Mas nem todas são competitivas”, diz a presidente do IBP.
Para ela, os estaleiros precisam identificar novos nichos de atuação, como no descomissionamento de plataformas da bacia de Campos. “Existem estimativas de que esse mercado deve movimentar US$ 80 bilhões na década e o Brasil pode abrigar cerca de 11% desses investimentos. Então, esse mercado pode revitalizar indústria de apoio e fornecedores do Rio de Janeiro”, afirma a executiva.
Outra potencialidade para o Rio está no setor financeiro. Nos anos 1980, o Rio viveu um rápido declínio no setor, com a quebra da bolsa local e a perda da sede de bancos e corretoras para São Paulo. O peso do setor financeiro na economia do Estado do Rio recuou de 19,6% em 1980 para 5,6% em 2017. Essa participação não é menor porque nos anos 2000 floresceram gestoras de recursos na cidade, no Leblon, na zona sul.
Para Balassiano, da FGV, a cidade tem vocação para ocupar nichos do setor financeiro, como as fintechs – empresas financeiras de tecnologia. “O ambiente de juros baixos pode incentivar o surgimento de negócios no setor. É o caso dos agentes autônomos”, diz o economista. Outro ponto relevante citado por especialistas é o da economia criativa – audiovisual, música, design, produção cultural e moda.
Mesmo a pandemia mostrou quanto o Rio ainda pode aproveitar para reforçar o complexo da saúde, a partir de centros de excelência de pesquisa como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Estado tem atualmente 10% da indústria farmacêutica nacional. É possível desenvolver o setor com política de compras a partir do Sistema Único de Saúde (SUS).
O “pulo do gato” para a economia do Rio de Janeiro sair da crise seria formar uma parceria produtiva e eficaz entre setor privado e o meio acadêmico, aliando o potencial de conhecimento de pesquisadores e cientistas, acredita Fabio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC). “O Rio tem um polo de conhecimento muito grande. Universidades muito boas. Temos uma unidade da Petrobras dentro da UFRJ”, afirma. “O setor privado tem que ganhar mais protagonismo na economia do Rio.”
Outra parte da solução, porém, estaria fora do alcance local. Jonathas Goulart, coordenador de Estudos Econômicos da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), diz que é preciso acelerar as reformas tributária e a administrativa em Brasília. A primeira reduziria a carga de ICMS e ISS para a indústria. A administrativa poderia ajudar a reduzir gastos do governo fluminense com servidores. “A questão tributária afeta muito o empresariado fluminense. O ICMS de energia no Rio de Janeiro é o mais caro do país”, diz Goulart.