Gustavo Morelli | Sócio Diretor da Macroplan
A adoção de estratégias de longo prazo e o uso de indicadores para monitorar o desempenho se transformaram em ferramentas cada vez mais usuais na gestão pública, pois são a base para a construção de políticas mais efetivas. Contudo, apenas parte das políticas e iniciativas necessárias para mudar a realidade está sob o domínio dos estados, o que muitas vezes acaba por produzir mudanças lentas na realidade que, por sua vez, geram enorme frustração.
Após a promulgação da Constituição de 1988, parte importante das políticas públicas foi repassada para o nível municipal. Temas como educação, saúde, habitação, saneamento e ordenamento urbano são desde então atribuição dos municípios, atores fundamentais para avanços relevantes nos indicadores estaduais.
Na saúde, é responsabilidade do município garantir os serviços de atenção básica. Os municípios gerenciam mais de 50 mil equipes de saúde na família (conforme dados do DataSUS), as quais respondem pela cobertura de 73% da população brasileira.
Na educação, cabe aos municípios cuidar da Educação Infantil e, também, do Ensino Fundamental. Eles são responsáveis por, aproximadamente, 75% da oferta de pré-escola e 85% da oferta pública de educação nos anos iniciais do Ensino Fundamental. São 3,9 milhões de crianças (4 a 5 anos) e 10,4 milhões de alunos, apenas no Fundamental I, nas redes públicas dos municípios, conforme dados do INEP/MEC-2017.
Mesmo em campos onde a ação do estado tem maior protagonismo, como na segurança pública, os municípios têm muito a contribuir, com estratégias de monitoramento eletrônico, medidas administrativas relativas ao uso e ao ordenamento do espaço urbano, à iluminação, à assistência e prevenção sociais.
A reduzida cobertura ou a baixa qualidade das políticas que cabem aos municípios resultarão em maior demanda sobre a rede hospitalar do estado, piores avaliações na educação e custos crescentes no enfrentamento da violência, entre outras consequências.
Quando havia mais recursos públicos disponíveis e certa margem de manobra, o arranjo do Pacto Federativo de 1988 ainda se sustentava, embora com baixa eficiência e pouca efetividade. Agora o Pacto está esgotado, e não só porque os recursos ficaram e ficarão mais escassos.
Dois fatores tornaram mais complexa a concertação estados-municípios: a concentração de recursos na União transferidos muitas vezes diretamente aos municípios; e a diversidade de tamanhos frente à complexidade das responsabilidades e maturidade de gestão dos municípios.
A concentração de recursos na união
A crescente concentração da receita de tributos e da formulação de políticas e programas na União tem sido justificada por dois argumentos. O primeiro é o da eficiência, pois a União tem capacidade arrecadatória muito maior do que os estados e municípios. O segundo argumento pró-centralização seria a necessidade de induzir focos e impor certa “disciplina” aos estados e municípios na aplicação dos recursos, seja nas transferências compulsórias com destinação definida (caso de recursos para educação e saúde), seja nas voluntárias, cujo destino, com frequência, é induzido por políticas e programas nacionais.
Em 2016, segundo a Receita Federal, enquanto a União ficava com 68,3% do total da arrecadação no país, os estados ficavam com 25,4%, e os municípios, apenas com 6,3%. Mesmo após as transferências, a repartição continua muito desigual. A União fica com, aproximadamente, 51%; os estados, com 28%; e os municípios, com 21%.[1]
A heterogeneidade de tamanhos e a complexidade das responsabilidades
Existem no país 5.570 municípios. Mais de dois terços (68,3%) com menos de 20 mil habitantes[2]. Faltam à maior parte deles capacidade financeira e recursos humanos capazes de dar conta do amplo número de responsabilidades que lhes cabe na execução das políticas públicas.
O conjunto de atribuições repassadas aos municípios, mesmo que apresente alguma diferenciação na complexidade exigida em função dos desiguais tamanhos, é bastante amplo. São planos diversos, como o de saneamento básico, de gestão integrada de resíduos sólidos, o plano diretor, para orientar o ordenamento urbano e o uso do solo, o plano plurianual, que define estratégias e prioridades, além de nortear o orçamento da gestão.
É da competência dos municípios a execução de tarefas complexas para quem está longe dos grandes centros, como recrutar e gerir médicos para a atenção básica, contratar professores para o Ensino Fundamental, estruturar currículos, realizar supervisão pedagógica.
Os municípios precisam atender a amplo conjunto de obrigações e condicionalidades definidas no âmbito das diferentes políticas: preencher sistemas, enviar informações, estruturar comitês, como o da educação, da assistência social, dos direitos da criança e do adolescente; da saúde; do idoso; da mulher. Cada qual com seu regramento e exigências próprios.
Uma agenda complexa e pesada para a maior parte dos municípios e de difícil atendimento, enquanto, de um lado, as regras de criação de novos municípios não exigirem maior grau de autonomia e capacidade de gestão; e, de outro, enquanto a forma de execução induzir à fragmentação, à adoção de ações isoladas e quase autônomas na execução das políticas sob a alçada dos municípios.
O esgotamento do pacto federativo
O atual Pacto Federativo, definido na Constituição de 1988, precisa ser revisto. Uma tarefa complexa que precisará ser enfrentada no âmbito da reforma do Estado brasileiro. Contudo, há importantes espaços para a renovação da relação estado-município no curto prazo que podem ser adotadas desde já no âmbito de cada estado.
A maior parte dos diagnósticos indica que:
- Existem espaços relevantes para o aumento da eficiência na prestação de serviços públicos em suas diferentes dimensões (custos, qualidade, abrangência, prazos).
- As competências comuns, entre entes da federação, quando mal articuladas impactam negativamente o desempenho das políticas.
- A heterogeneidade de capacidade financeira e de gestão entre os municípios torna mais complexa a execução das políticas.
- A visão setorial, tradicional, em que as políticas públicas são implantadas isoladamente umas das outras, leva à perda de sinergia.
O desafio é atuar para melhorar, a curto prazo, a performance de estados e municípios em políticas públicas essenciais para o cidadão, mesmo no contexto do Pacto Federativo em vigor.
Um novo papel para a União e os estados na execução das políticas públicas
Um país imenso e diverso como o Brasil não pode ser microgerenciado por Brasília: isso contraria fundamentos e boas práticas elementares de organização e gestão de sistemas complexos, além de criar altos custos para o país. A União, detentora da maior parte dos recursos, muitas vezes se relaciona diretamente com os municípios, enfraquecendo o papel do estado.
É preciso que os estados acentuem as funções de coordenação e complementação de prestação de serviços, quando houver ganhos de escala e maiores níveis de complexidade, que se concentrem na estruturação, capacitação para operação e gestão de grandes sistemas e redes, como as de educação, segurança pública, assistência social e gestão ambiental. Que fomentem e regulem a ação regionalizada, a partir do apoio à consolidação de redes de cidades organizadas em torno de cidades-polo (hubs) e consorciadas, para dar escala a conjuntos de pequenos municípios.
Ao governo federal deveria ser requerido menor execução e maior foco na regulação lato sensu; na formulação e na avaliação das grandes políticas públicas; nos estímulos à execução; na consolidação e disseminação de resultados alcançados e de práticas bem-sucedidas.
Nova forma de relação estado-municípios, por que fazer e por onde começar
De modo imediato é possível aos estados estabelecer alianças com os municípios em prol da competitividade e da melhoria da qualidade de vida. O objetivo é fazer avançar a capacidade de entrega de resultados no curto prazo, mesmo num ambiente de escassez de recursos e tendo como pano de fundo o atual Pacto Federativo.
Duas competências são essenciais à constituição das alianças entre estados e municípios. A primeira delas é a existência de uma inteligência de dados que permita seletividade nas escolhas e focalização das políticas. Evitar a generalização de políticas, ofertando tudo, de modo homogêneo, para todos.
Os desafios de cada estado não se distribuem de modo homogêneo pelo conjunto de municípios. As realidades são muito distintas e a contribuição de cada município para o resultado estadual é bastante diferenciada. Regra geral, 20% dos municípios de cada estado correspondem a 80% do desafio a ser superado em cada uma das áreas prioritárias. Assim, os esforços e recursos devem ser diferenciados. Foco e seletividade para alcançar maior precisão e efetividade são fundamentais.
Aliança estado-municípios, quais as vantagens
- Acelerar capacidade de entrega de resultados
- Aprimorar a qualidade na execução das políticas
- Otimizar o uso dos recursos
- Ampliar e integrar ações
- Focalizar esforços em áreas e públicos prioritários
- Evitar sobreposição de ações
- Difundir e compartilhar conhecimentos e competências
Projeto recente realizado pela Macroplan tendo em vista estimular a cooperação entre estados e municípios para o Consórcio Brasil Central,[3] que abrange sete estados, com um total de 25,6 milhões de habitantes e 875 municípios, identificou que:
- 118.009 crianças de 4 a 5 anos estavam fora da pré-escola na região. Apenas 154 municípios (17,6% do total) representaram 70,6% destas crianças;
- 5.550 crianças faleceram antes do primeiro ano de vida na região. Apenas 163 municípios (18,6% do total) representaram 73,3% do total desses óbitos;
- 9.113 homicídios foram registrados na região em 2015. Apenas 92 municípios (10,5% do total) representaram 75,6% deste total.
Em cada um desses municípios ainda é possível novas focalizações que identifiquem causas, segmentos da população e regiões prioritárias da cidade para a ação. Quanto à mortalidade infantil, por exemplo, verifica-se que o período mais recorrente para falecimento é o neonatal (primeiros 28 dias, incompletos). Ocorreram nessa fase 54% dos óbitos. Destes, 75% se deram por causas consideradas evitáveis pelo Ministério da Saúde. Entre estas, o fator com maior impacto é o adequado acompanhamento pré-natal, em especial à população de baixos níveis de renda e de escolaridade.
Em síntese, selecionado o desafio, pode-se direcionar a ação para municípios que mais necessitem de apoio, a fim de neles identificar causas com maior urgência, segmentos da população com menor cobertura e, em alguns casos, bairros com maior defasagem.
A segunda competência requerida é a gestão de sistemas complexos e redes (não hierárquicas) de atores que organizem e compartilhem conhecimentos e recursos para ampliar a efetividade da ação.
O estado do Ceará tem colhido bons resultados em leitura na idade certa e no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Avançou de 3,5 para 6,1 no IDEB da rede pública, tendo superado, já em 2015, a meta do MEC (Ministério da Educação e Cultura) para 2021. Fez isso transferindo todas as escolas da rede para os municípios. Deixou de se responsabilizar pela gestão cotidiana dessas escolas, sua manutenção, seus professores. Passou a atuar na gestão da rede, com foco no apoio aos municípios quanto à capacitação dos professores e gestores, à estruturação dos materiais didáticos e ao processo de avaliação. Concentrou seus recursos e competências para apoiar naquilo que, sozinhos, os municípios teriam maior dificuldade de executar. Atuou para organizar a rede e não para substituir os municípios.
Novas formas de concertação estados-municípios
As práticas existentes demonstram que se trata muito mais de estabelecer uma aliança para transferir conhecimentos e competências, de apoiar os municípios na execução das políticas, de identificar os focos e avaliar os resultados do que estadualizar a gestão e o financiamento das redes e dos serviços.
O estabelecimento de ação sinérgica entre estados e municípios demanda um processo de diálogo para sensibilização e mobilização baseado numa postura republicana. A constituição de alianças para competitividade e melhoria da qualidade de vida, contudo, requer medidas concretas para sua efetivação, como a pactuação de ações e metas e o estabelecimento de mecanismos de cooperação, governança e incentivos – financeiros e não financeiros – para uma atuação conjunta.
O desafio dos novos governantes é mudar o modelo vigente de atuação – da competição ao trabalho conjunto; da fragmentação de ações para a coordenação de responsabilidades; de políticas generalistas (“tudo para todos”) para a execução de iniciativas orientadas pelos desafios prioritários de cada município ou região do estado; da atuação hierárquica e analógica baseada nos processos de comando e controle para a atuação em rede, intensiva no uso das tecnologias digitais que favoreçam a gestão e o compartilhamento de conhecimentos.
O momento é oportuno para inovar e superar o atual Pacto Federativo, que não mais funciona. E para construir formas de relacionamento estado-municípios mais produtivas, que direcionem e maximizem recursos e competências para produzir mais e melhores resultados para todos.
[1] Fonte: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/543844/RAF18_JUL2018_TopicoEspecial_Receitas.pdf
[2] Em 2017, segundo o IBGE, 84,5% da população vivia em 31,7% dos municípios, pouco mais da metade da população brasileira – 56,5% ou 117,2 milhões de habitantes – em apenas 5,6% dos municípios (310), que são aqueles com mais de 100 mil habitantes.
[3] www.brasilcentral.gov.br
Elaboração
Gustavo Morelli | Autoria
Adriana Fontes | Revisão técnica
Kathia Ferreira | Revisão de texto
Luiza Raj | Projeto gráfico
Tatiane Limani | Projeto gráfico