Prefácio
Uma coletânea em tempos de expectativas deprimidas
Fabio Giambiagi volta à carga. Incansável, ele vem se dedicando há quase três décadas a refletir sobre a economia brasileira. Muitos dos livros que editou, como é o caso do presente, são coletâneas de textos de diversos temas e autores – o feito é que, inevitavelmente, a cada novo brasileira nos trilhos.
O volume que o leitor tem em mãos é a última atualização desse projeto permanente de Fabio. É leitura obrigatória para aqueles que gostam de pensar sobre os problemas brasileiros a partir de diagnósticos claros, baseados na melhor evidência e teoria disponível, capazes de propor desenhos de políticas públicas que encaminhem soluções.
Tenho cá em minha biblioteca o volume Reforma no Brasil: balanço e agenda, de 2004, organizado por Fabio, José Guilherme Reis e o saudoso André Urani, que nos faz tanta falta, além de prefaciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Confrontando o volume de 2004 com este que o leitor tem em mãos agora, uma diferença marcante que se nota é a necessidade que havia, então, de tratar do tema do baixo crescimento. Tanto o prefácio de FHC quanto o texto introdutório dos organizadores, bem como o texto inicial daquele livro, de Armando Castelar Pinheiro, tratavam do tema. O baixo crescimento tinha que ser explicado e justificado. Ou seja, o baixo crescimento não era visto como a normalidade de nossa economia.
No volume de agora não há esta questão. O baixo crescimento é um dado. As expectativas estão deprimidas. O primeiro capítulo, a cargo de José Ronaldo de Castro Souza Júnior, documenta nosso baixíssimo potencial de crescimento. Entre 2004 e hoje, consumimos nossos últimos anos de bônus demográfico, que se iniciou em meados dos anos 1970 e terminou em 2018. Hoje, segundo os números de José Ronaldo e mesmo sob o cenário otimista que supõe a aprovação de diversas reformas, devemos crescer na próxima década, na melhor das hipóteses, 2,6% ao ano, ou 30% na década (ambas em termos per capita). Provavelmente, o desempenho será pior.
Para mim, a tónica do volume é esta: não há grandes esperanças. Dependemos de nós mesmos -e queimamos diversas oportunidades. Estamos por nossa conta e por conta de nossa capacidade de negociar reformas que elevem a taxa de crescimento da produtividade.
Uma mudança importante em relação ao volume de 2004 é o espaço que a conexão com o resto do mundo ocupa em um e noutro volume. Naquele de 16 anos atrás, quatro capítulos se dedicavam a temas de política econômica externa. No atual volume há um único capítulo o oitavo, de Ivan T. M. Oliveira, sobre a abertura da economia. De maneira muito direta precisa, Ivan estabelece a agenda: revisão da política tarifária, revisão da política não tarifária e atualização da gestão de instituições e processos no comércio exterior. Não deixa de ser um amadurecimento. Abertura é um elemento imprescindível para o crescimento, mas as bases de crescimento serão construídas domesticamente.
Em contraste com o dado negativo das expectativas deprimidas, transparece no presente volume um amadurecimento com relação à estabilidade macroeconômica – o que deve ser celebrado. Em 2004, dois foram os capítulos dedicados a política monetária e um ao regime cambial. No atual, não há capítulo para a política cambial e há um capítulo que se dedica a aprimoramentos do regime de metas de inflação, o sexto, a cargo de Diogo Abry Guillén. A forma técnica e expedita como o tema é tratado sinaliza a existência na sociedade de maior consenso quanto à estabilidade de preços.
Não é pouco e representa uma base sólida para possíveis novas conquistas. Se a desorganização monetária não é um equilíbrio politicamente aceitável, a sociedade negociará sob bases mais realistas. Reduz-se significativamente o espaço para o populismo. A inflação – tomada como possível solução para o conflito distributivo de uma sociedade – só não é pior do que a guerra civil.
O consenso monetário lança as bases para nossa maior dificuldade: o ajuste fiscal. O tema fiscal não é simplesmente uma questão técnica. Depende de complexa economia política e, como tenho afirmado mais de uma vez, é no orçamento público que, modernamente, o conflito distributivo tem sido tratado. Do chão de fábrica e das manifestações operárias – muitas vezes contidas a patadas de cavalos, como era comum na segunda metade do século 19 e na primeira do século 20 – ele se encaminhou, nas sociedades modernas, para o orçamento público. Melhor assim: cidadãos eleitos debatem e decidem como os impostos serão cobrados e como a receita será alocada.
No volume de 2004, havia dois capítulos dedicados ao tema. O primeiro tinha o sugestivo título de “As razões do ajuste fiscal”. Isto é, era necessário explicar para as pessoas os motivos do ajuste. No volume atual, temos o segundo capítulo, de Pedro Jucá Maciel e Rafael Cavalcanti Araújo, sobre as regras fiscais e o quarto capítulo, sobre as finanças estaduais. No segundo capítulo, discute-se qual é o melhor arcabouço institucional para condução das metas e objetivos da política fiscal. E claro que, entre outras, é função de uma regra fiscal aumentar a transparência da política fiscal e auxiliar o Congresso e a sociedade na gestão do conflito distributivo.
No quarto capítulo surge um tema em que nada avançamos. Aparentemente, andamos em círculo. Guilherme Tinoco é o autor de “Estados: rumo a um ajuste de uma década”. Ali ele documenta o papel que o governo central teve na desorganização das finanças estaduais, o permitir aumento de dívida para custeio: “O crédito aos Estados não era incentivado apenas por meio de concessão de garantia pela União: ela própria criou diferentes programas de financiamento a investimentos operados pelos bancos públicos federais, com o objetivo de possibilitar amplo acesso ao crédito para todos os entes federativos”. A arrumação da casa tornou-se desde então um empreendimento complexo: passa por estabelecer um conceito único de gasto com pessoal; por uma reforma administrativa que controle a elevação automática do gasto com pessoal; e pela regulamentação do direito de greve dos servidores, a fim de reequilibrar a relação trabalhista, hoje desproporcionalmente favorável aos servidores, em detrimento do Estado.
Um dos itens mais complexos do conflito distributivo é o que ocorre entre o presente o futuro. Entre os adultos e idosos, de um lado; e entre os que ainda não nasceram ou que nasceram há pouco tempo – as crianças -, de outro. O tema pendente da reforma da previdência ocupa um capítulo em ambos os volumes. Gabriel Nemer Tenoury e Pedro Nery, no terceiro capítulo do presente livro, fazem um sumário das conquistas com a reforma da previdência aprovada em 2019. Há inúmeras questões em aberto, detalhadamente tratadas por Tenoury e Nery. Tudo indica que, em algum momento da década de 2020, retornaremos ao tema.
Como no volume de 2004, há no atual um capítulo dedicado à reforma tributária. Trata-se do quinto capítulo a cargo de Rodrigo O. Orair. Há ali uma defesa convincente do Projeto de Emenda Constitucional n 45 (PEC 45), preparado pelo Centro de Cidadania Fiscal (C. CiF.) e de autoria do deputado do MDB de SP, Baleia Rossi, que cria um IVA nacional harmonizado e compartilhado pela União, Estados e Municípios. Orair elabora rapidamente sobre a reforma dos impostos de renda com vistas à maior progressividade, tema sobre o qual tem artigos importantes, escritos em colaboração dom Sergio Gobetti. Mas, de fato, a agenda de redução do custo e conformidade e da litigiosidade, da melhor alocação do investimento e da atividade produtiva, é prioritária para elevar o potencial de crescimento. Para esses temas, a PEC 45 parece ser a melhor solução que temos à mão.
O sétimo capítulo, de Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça e Bruno Silva Dalcolmo, “Legislação trabalhista: o que falta mudar?”, apresenta as mudanças recentes promovidas pela reforma realizada no governo Temer, além de apresentar qual deve ser a agenda futura, nesse tema. Assim, como na previdência, esse foi um setor em que avançamos. Ainda bem, pois as alterações tecnológicas têm ocorrido em velocidade ainda maior. O sétimo capítulo é complementado pelo 20º e último do livro, escrito por Ana Maria Barufi, que aborda “O futuro do trabalho no modelo de plataforma”.
Há três capítulos no livro dedicados aos diferentes aspectos microeconômicos da agenda de produtividade. O 9º, de Lívia Gouvea e Fábio Brener Roitman, apresenta e aplica para o Brasil a literatura recente de má alocação do investimento em nível da firma (ou da planta produtiva) e elabora a agenda para elevar a produtividade das empresas. No 10º capítulo, Ricardo de Menezes Barboza e Gilberto Borça Jr. Apresentam “O futuro das políticas de desenvolvimento: o que aprendemos?”. Quais são as lições que podemos tirar das ações dos bancos de desenvolvimentos mundo afora e qual deve ser o papel no estímulo da competição e à inovação? Completa o bloco dedicado à eficiência microeconômica o 11º capítulo, a cargo de Fabiano Mezadre Pompermayer, Diogo Mac Cord de Faria e Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança, “A agenda da infraestrutura: planejamento e regulação”. Muito além do problema crônico do baixo orçamento direcionado ao setor, questão de natureza fiscal, o capítulo expõe ótimo diagnóstico e sugestões para melhorar o ambiente regulatório, com o objetivo de tentar deslanchar o investimento em infraestrutura.
O grande tema ausente da obra foi a defesa da concorrência. A impressão que se tem é a de que tempos em que a gestão da política tem sido ruim, em que temos lido, por azar do destino, erros dos políticos e da sociedade, presidentes com pouco apetite pela política, a área de defesa a concorrência ficou muito a serviço dos interesses políticos. O espaço para aprimoramento e avanços nesta área tem sido cada vez menor. O tema, importantíssimo para a agenda de eficiência microeconômica e, portanto, para o crescimento, demandará outro momento para que avance. Penso que a omissão do tema nessa coletânea se deva a esse fato. O tema, por enquanto, não está na pauta dos gestores públicos, dos políticos e da sociedade. Não era assim em 2004. Oxalá em futuro próximo ele retorne à agenda.
Se há consenso sobre os serviços públicos a serem oferecidos pelo Estado – educação, saúde e segurança -, restam muitas questões a serem resolvidas sobre a eficácia desses gastos, abordadas em três capítulos centrais do livro. Senti falta de uma abordagem comum aos três setores. É muito interessante ler os capítulos em conjunto. Depreende-se da leitura do 13º capítulo, “A saúde na década de 2020: navegar é preciso”, de Rudi Rocha, que, comparativamente, o Estado brasileiro é muito mais efetivo para ofertar serviços de saúde do que os de educação e segurança. Este tema não é diretamente abordado, mas possivelmente a cooperação mais produtiva entre o setor público e o setor privado, no campo da saúde, explique o seu desempenho relativamente melhor.
0 12º capítulo, “Os desafios da educação”, a cargo de ‘Teresa Cozetti Pontual Pereira e de Vitor Azevedo Pereira Pontual, apresentam os principais indicadores e, a partir de casos bem-sucedidos -a experiência exitosa do Ceará é um guia essencial -, elabora as políticas possíveis. Acompanhamento de resultados com avaliações externas, metas, e algum mecanismo financeiro que premie os prefeitos por bons resultados, parecem ser elementos comuns aos casos bem-sucedidos. Fica claro que, sem repensar toda a carreira do magistério, será difícil avançarmos muito mais. Como estimular os melhores alunos do ENEM a seguir a carreira do magistério?
O 14º capítulo. “Segurança pública: uma agenda baseada em evidências”, de Joana C. M. Monteiro, elabora quatro linhas de ação para melhorar a eficiência da segurança pública: governança e gestão por resultados; treinamento e avaliação do trabalho policial; eficácia da justiça; e prevenção com melhora da informação. Diferentemente do capítulo sobre educação, no capítulo de segurança não se empregam as experiências bem-sucedidas como um guia para o desenho das políticas. Por exemplo, dados que constam na Tabela 14.1 do capítulo documentam que os homicídios no Estado de São Paulo, em 2018, foram menores do que em 1980; que o Estado apresentou a menor taxa de homicídios entre todos os demais; além de registrar a maior queda (de 77%) da taxa de homicídio com relação ao pico dos anos 1990, de que se tem notícia. Será que nada podemos aprender com a experiência de São Paulo?
Segue um capítulo que faz a transição entre a infraestrutura e a área social. O 15º capítulo cuida de nosso atraso no saneamento básico. “Saneamento: a agenda do século 20 para o país do século 21”, de Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança, Diogo Mac Cord de Faria e Cíntia Leal Marinho de Araújo, apresenta nossos índices indigentes de cobertura. Segue o diagnóstico: vácuo legal, baixo investimento e o gosto dos políticos por empresas públicas. Como no capítulo da reforma tributária, há esperança com legislação em tramitação (nesse caso, em estágio avançado) no Congresso: “Espera-se que uma regulação mais uniforme, juntamente com a retirada de barreiras à entrada ao ente privado, proporcione condições mais adequadas, estáveis e maior segurança política para que seja possível alcançar a universalização do saneamento básico no país”.
O capítulo seguinte, o 16º, “Política social: pensando em 2030”, de Maína Celidonio e Paula Pedro, a partir da experiência consolidada e bem-sucedida do programa Bolsa Família, estabelece qual é a agenda incremental que, sem comprometer o orçamento público, melhore a efetividade dos programas. Há espaço para gastar melhor os recursos públicos. Esse capítulo é complementado pelo penúltimo capítulo, 19º, de Gustavo Morelli e Adriana Fontes, que trata da inteligência de dados para a formulação e a gestão de políticas sociais no século 21.
A última parte do volume aborda temas muito atuais que, evidentemente, nem se consideravam no já longínquo 2004, quando o volume anterior foi publicado. Além dos dois últimos, que já tive oportunidade de mencionar, há o 17º capítulo, “O futuro dos meios de pagamento”, a cargo de Ricardo Teixeira Leite Mourão e Angelo Mont’alverne Duarte, com toda a discussão dos novos mecanismos de pagamento, que fazem o cartão de crédito parecer algo dos tempos dos Flintstones, e o 18º, sobre “O fenômeno do Big Data”, de Éber Gonçalves e Leandro Ortiz do Nascimento.
A sociedade brasileira vive seu inferno astral desde 2013. Nos últimos anos, perdemos a imagem brejeira que sustentava uma visão relativamente positiva que tínhamos de nós mesmos e que o mundo nutria por nós. Nosso futebol perdeu o brilho, metáfora da perda do nosso encanto. Envelhecemos sem ter ficado ricos. Estamos aqui por nossa conta e risco. O volume expressa este amadurecimento, muito duramente obtido.
Talvez estejamos melhor do que imaginamos. O Brasil de hoje, após todo o desempenho econômico ruim (o social foi um pouco melhor) no período posterior à redemocratização, lembra um pouco o país do final do Império. As pautas que devem andar e têm grande consenso na sociedade, por ação de alguns grupos de pressão com forte poder de veto, não andam. Naquela época, a abolição não andava, a reforma agrária não andava, a educação não andava; agora, levamos 20 anos para aprovar uma reforma da previdência cuja necessidade estava clara há mais de duas décadas. Há toda uma agenda de reforma que já se desenhava no volume de 2004. E várias que ainda estão na agenda, como este volume demonstra.
As nações têm o seu caminho. O progresso econômico não é inevitável. Nosso vizinho ao sul – a Argentina – é o melhor exemplo. Um bom começo é rejeitar a inflação como solução possível do conflito distributivo. Outro bom começo é deixar de enxergar no exterior a fonte de nossa pobreza ou possível tábua de salvação. Devemos olhar para dentro e ver o que podemos fazer com o que temos. Um bom começo é ler este volume e pensar tema por tema. Sem mágica. Com o pé no chão e com a certeza de que o futuro de uma nação é feito exclusivamente por ela. Sempre é possível recomeçar.
Samuel Pessoa
São Paulo, junho de 2020